Talvez eu me demore mais do que de costume no texto de hoje. Peço, antecipadamente, desculpas, mas encorajo-os a prosseguirem com a leitura. Creio que valerá a pena! Se não valer, esperarei de vocês, então, duas desculpas!!!
Certamente todos já ouvimos, aqui e alhures, a história das três árvores e o sonho que cada uma delas “acalentava ao coração”: serem um dia, cada uma ao seu modo, mais que simples árvores num perdido bosque. Uma queria ser um baú que guardasse em si tesouros incalculáveis; a segunda desejava ser uma embarcação digna de permitir a navegação de grandes reis e nobres; a terceira, por fim, queria ser uma peça rara, por todos admirada! Passado o tempo, lenhadores vieram e cortaram-nas, levando-as cada uma para o seu destino. Aparentemente fadadas ao esquecimento, uma tornou-se rústicas toras a servir de coxo para alimentação animal; a segunda, numa pequena barca de pescadores; e a terceira, numa cruz para expiação dos crimes de malfeitores. Tudo levava a crer que nenhuma delas conseguiria realizar seu sonho. Entretanto, a vida tem caminhos que desconhecemos e as circunstâncias constantemente mudam, fazendo-nos passar do choro ao riso, da alegria a dor, da esperança à desesperança, e vice e versa, muito rapidamente. Sem se darem conta, a primeira serviu para amparar o filho de Deus nascido pobre e colocado numa manjedoura; a segunda levou o Cristo para inúmeros lugares e testemunhou o Mestre caminhando sobre as águas, e a falta de fé de um dos apóstolos; a terceira tornou-se símbolo por excelência de quem dá a vida por amor. É bem assim, como diz antigo ditado popular: Deus escreve certo por linhas tortas!!!
Os desígnios do Senhor são mesmo insondáveis; imperscrutáveis são seus caminhos, como nos atesta a Palavra: “Ó Deus, como são insondáveis para mim os teus projetos!” (Salmo 139 (138)17). “Ó profundeza da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus julgamentos e impenetráveis os seus caminhos!” (Rm 11, 33) “Como as tuas obras são grandes, Senhor, e insondáveis os teus desígnios!” (Salmo 92(91) 6. E esse “mistério” insondável, somado às circunstâncias adversas pelas quais passamos em várias instâncias de nossa sociedade (política, social, religiosa e econômica) e pelo alastrar-se da pandemia, pode perturbar vários corações, minorando a fé e fazendo temer o futuro em sua incerta condição. Agitam-se ansiosas as mentes das pessoas, pensando no futuro incerto do país, no futuro incerto dos nossos filhos, no futuro incerto de nossos sonhos e projetos. Por força desta condição, nos perguntamos como entregarmo-nos às incertezas do amanhã? É possível crer, olhando para o escuro, para a incerteza? Perguntou-me um jovem por estes dias: onde está Deus?
Mas quem disse que nossos olhos e nosso coração têm que se fixar na escuridão e na incerteza? Com quem aprendemos a abandonar tão rapidamente aquela atitude necessária da fé de jogar fora todo medo, a fim de que o amor seja perfeito? (cf. 1João 4,18). Sendo verdade que os desígnios de Deus não podem ser conhecidos por nós, mais verdade ainda é que tais desígnios são os desígnios de quem por primeiro nos amou e nos levou para junto de si, carregados sobre asas de águia, como nos atesta a Palavra: “Vocês viram o que fiz ao Egito e como os transportei sobre asas de águias e os trouxe para junto de mim”! (Êxodo 19, 4). Ora, se não conhecemos os desígnios de Deus, conhecemos seu amor. Como não esperar somente o amor e a bondade de sua parte? Embora não compreendamos os caminhos nos quais Deus nos permite trilhar, sabemos que, sendo amor, nos conduzirá com misericórdia e nos permitirá chegar a bom termo, aqui ou acolá!
Lembro-me bem da história do Senhor Paulo Domingues, que conheci na Colônia Santa Isabel quando fui franciscano na Ordem dos frades Menores, em Betim. A Colônia era o lugar para onde eram levados (enxotados mesmo) os hansenianos (leprosos de antigamente); na verdade um lugar onde os leprosos eram “enterrados” ainda em vida. O senhor Paulo chegou lá completamente despido de todos os sonhos e abalado na fé, por não entender por que Deus, a quem queria servir nos altares como padre, permitiu que ele contraísse a “lepra”! É que no dia em que havia ajuntado as malas, beijado carinhosamente a mãe e o pai, pedindo-lhes a bênção, sentindo uma pontada de dor no coração pela despedida, mas uma alegria inconteste por ter sido aceito para o seminário, onde se prepararia para ser sacerdote, recebeu o vaticínio: estava com a lepra!!! Acordou com uma mancha esbranquiçada na perna e foi diagnosticado ali mesmo, pelo motorista que o havia ido buscar para a viagem. Ao invés do seminário, chegou à Colônia Santa Isabel! “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? (Salmo 22(21) 1). Cães numerosos me rodeiam furiosos; abrem a goela contra mim leões que devoram e rugem! (Salmo 22(21)14.17). Assim estava o coração do senhor Domingues. Desceu às profundezas da escuridão e amargou a companhia da morte declarada a comer, pela lepra, sua carne!!! Como não amaldiçoar o dia em que nasceu e o ventre que o amamentou como fez Jó (Jó 3, 3-26)? Discordaríamos dele se o ouvíssemos questionar-se e confessar no portão da Colônia Santa Isabel: “Será que Deus vai rejeitar-nos para sempre? E nunca mais nos há de dar o seu favor? Por acaso, seu amor foi esgotado? Sua promessa, afinal, terá falhado? Será que Deus se esqueceu de ter piedade? Será que a ira lhe fechou o coração? Eu confesso que é esta a minha dor: a mão de Deus não é a mesma: está mudada!” (Salmo 77(76) 7-11).
Durante muito tempo o senhor Paulo ficou lamentando sua sorte, vivendo entre desiludido e entristecido, minado no sentido da vida, abandonado à sorte dos desgraçados... até que Deus o fez conhecer, ali, naquele lugar de “mortos vivos” (como muitos consideravam as mais de dez mil pessoas que por ali passaram), a jovem Alaíde que espalhava, naquele lugar, o suave odor de Cristo (cf. 2Cor 2, 15), incansavelmente, servindo com alegria aos leprosos, e falando com altiva fé de um Deus maravilhoso. Pensando ser uma inconsequente por estar ali, gastando sua juventude naquele lugar, veio saber por boca dela mesma ser ela tão leprosa quanto ele, mas que nada poderia impedi-la de amar como Deus queria. Pronto: ela o ensinou a reacender a chama do amor, ali mesmo, onde todos pensavam amor não existir. Aprendeu a assumir o seu sacerdócio batismal, servindo aos hansenianos da Colônia ao lado daquela que passou a ser, por 3 anos, sua esposa e companheira. Reinventou-se ao lado dela e permitiu que Deus realizasse em sua vida o sonho divino de seu amor, ainda que por caminho, para nós, tortuoso demais. Serviu brava e santamente a todos!
Não olhemos para a escuridão! Não deixemos as incertezas apequenarem nossa fé! Que o medo não sufoque o bem que devemos fazer! Fixemos nosso olhar no único sentimento que sempre permanecerá vivo, real, intenso, absoluto, inteiro: o amor de Deus, seja lá por quais caminhos trilharmos!!! Em tudo não estamos sós!
Diácono Robson Adriano