O relato a seguir aconteceu no Vale do Jequitinhonha, região do estado brasileiro de Minas Gerias, no sudeste do país. Em missão, fui solicitado pelo pároco da paróquia me acolhia a visitar uma família que pedia uma visita para um de seus membros. Fui recebido pela Dona Bá e suas três filhas já adultas numa casinha bem simples, mas muito aconchegante. Nos olhares das quatro, notei uma mescla de tristeza e cumplicidade. Deixando-me à vontade na pequena sala, começaram a justificar o porquê do pedido insistente para a visita. O senhor Chico, companheiro da Dona Bá e pai das meninas, estava no quarto: acamado, diabético, com um câncer em estado avançado, prestes a fazer, nos próximos dias, um procedimento cirúrgico para amputação de sua perna esquerda, já tendo feito o mesmo com a direita! Dona Bá queria um momento de oração pelo senhor Chico, a pedido dele mesmo, antes do procedimento. Sem revolta alguma contaram-me da rigidez e severidade excessiva com que o Chico as tratou a vida inteira e de como, conforme o relato da dona Bá, depois de 40 anos de casados, ele havia abandonado o lar e a família por causa de uma paixão repentina com uma jovem 3 vezes mais nova que ele. Depois de algum tempo juntos, mas não conseguindo assumir a responsabilidade de cuidar do Chico quando ele descobriu o câncer, seguiu seu caminho deixando-o sozinho. Desamparado, ele encontrou na bebida um sufrágio para os males do corpo e do coração. Foi parar no fundo do poço! Contou-me a dona Bá que certo dia, voltando da celebração dominical da eucaristia, deparou-se com um moribundo caído no meio da estrada por onde tinha que passar para chegar à sua casa. Era ele!!! Consternada com a situação a que chegara o senhor Chico, refletindo sobre as mazelas da vida e de como ela pode nos ensinar com o amor e com a dor, tomou a difícil decisão de levar o senhor Chico para casa e cuidar dele, o que fazia com todo zelo (pelo que me relataram as filhas) até aquele momento. Depois fui ver o senhor Chico! Contou-me, com dificuldade, pois tinha problemas para falar, como chegara até ali e como sempre foi com sua família. Entremeava as falas e choros com uma frase: “sabe, filho, de nós Deus quer apenas o coração”!
Não tenhamos dúvida: apenas o coração não significa aqui uma opção menor entre várias outras possíveis. Apenas o coração significa tudo o que somos, e principalmente os afetos de nosso coração. Foi o próprio Mestre que nos ensinou o desejo do coração do Pai, falando em seu nome: “Quantas vezes Eu quis reunir os teus filhos como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vós não o aceitastes!” (Lucas 13, 34) Corremos o risco de apresentar a Deus nossas mãos cheias do que fazemos, nossa cabeça cheia do que pensamos, nossa “identidade” cheia dos títulos que conquistamos e assim por diante. Às vezes não nos damos conta de que Deus não precisa nem quer nada disto. Pode até aceitá-las, mas se antes de tudo isto estivermos inteiros, de coração! Esquecemos facilmente que o que fazemos, o que pensamos, e nossa identidade não se fundam no que temos ou podemos ter, mas no que somos e no que devemos ser, apenas uma coisa importando: vivermos à altura do Evangelho de Cristo (Filipenses 1, 27a) e “andarmos de modo digno para com o chamado que recebemos, com toda humildade e mansidão” (Efésios 4, 1).
Compreender isto é, conscientemente assumirmos nosso cotidiano, nossas ações e emoções, razões e sentimentos a partir da oblação de Abel e não da de Caim. Diz-nos a Palavra: “Caim apresentou produtos do solo como oferta a Javé. Abel, por sua vez, ofereceu os primogênitos e a gordura do seu rebanho. Javé gostou de Abel e de sua oferta, e não gostou de Caim e da oferta dele”! (Gênesis 4, 3-5). Para uma pergunta simples (Por que Deus agradou-se de Abel e de sua oferta, mas não de Caim e de sua oferta?), um resposta também simples: porque a oblação de Abel foi feita com o coração! Por isso a Palavra nos apresenta a ordem inversa das oblações ao afirmar do que Deus gostou: gostou de Abel e de sua oferta, e não gostou de Caim e da oferta dele! Abel se identificou com sua oferta por tê-la feita com o coração, oferecendo ao Senhor o seu melhor!! E parece ser exatamente assim “porque "Deus não é como o homem; o homem vê aparência, mas Deus olha o coração” (I Sam 16, 7). Eis o que define o valor de toda oblação: o sentido do coração! Os olhos do Senhor miravam o coração dos “oblantes”, não suas oblações!! O olhar de Deus mira o sentido que damos aos que fazemos, pensamos, somos e temos!!
Naquela noite, seu Chico pediu perdão à esposa e às filhas! Chorou copiosamente e não parava de repetir: “de nós, Deus quer apenas o coração!” Faleceu poucos dias depois! E tenho a impressão de que seu coração, pelo pedido de perdão que fez, chegou primeiro que ele ao coração de Deus, que é sempre justo... sem deixar de ser, sempre e ainda mais, misericordioso.
E enquanto estamos ainda aqui, para oferecermos a Deus sempre um coração contrito à semelhança da oblação de Abel, não cansemos de repetir: Senhor, manso e humilde de coração, fazei o nosso coração semelhante ao vosso!
Diácono Robson Adriano