A cada ano, a Igreja no Brasil nos convida a aprofundar um dos livros da Sagrada Escritura, durante o Mês da Bíblia. Agora é a vez do livro do Deuteronômio. Trata-se de um texto significativo, que ocupa uma posição estratégica na lista dos livros inspirados e funciona como uma espécie de dobradiça dentro do Antigo Testamento. De um lado, o Deuteronômio é a conclusão do Pentateuco, o conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia. De outro lado, oferece os critérios de leitura necessários para compreender os Livros Históricos de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis.
Como conclusão do Pentateuco, o Deuteronômio retoma temas fundamentais da experiência de fé do povo de Deus, como a libertação do Egito, a travessia do deserto, a aliança, a lei e os mandamentos, a fidelidade ao único Deus, o perigo da idolatria, a necessidade da conversão, a importância da figura dos profetas, dentre outros. Como introdução aos Livros Históricos, o Deuteronômio nos ajuda a entender que a história narrada na Bíblia não é uma crônica completa e exata dos acontecimentos do passado, mas é a interpretação de fé dos fatos mais significativos que podem iluminar a vida do povo e ajudá-lo a superar as crises atuais e construir um futuro melhor.
O Deuteronômio pode ser lido como uma coleção de homilias ou pregações de Moisés sobre o sentido da Lei de Deus. Vale lembrar que a lei na Bíblia não é um conjunto de proibições e obrigações, mas são orientações, princípios e valores que garantem a vida e a liberdade do povo. Através da lei, Deus conduz pela mão os seus filhos e filhas e lhes aponta o rumo certo para não se desviarem em sua caminhada. A lei de Deus é como as placas de trânsito que ajudam o motorista a seguir tranquilo a sua viagem. É como os modernos aplicativos que levam a pessoa, com segurança, até um destino desconhecido. O nome “Deuteronômio”, de origem grega, significa “segunda lei”, referindo-se à renovação dos compromissos assumidos por Deus e seu povo na aliança do monte Horeb (ou Sinai) e retomados em Moab, antes da entrada de Israel na terra prometida, conforme se lê em Dt 29,9-20. Através de um estilo exortativo, em tom de meditação, o livro convida a aprofundar o significado da lei e a buscar nela a inspiração para vencer os desafios que marcaram a história do povo, principalmente a destruição de Jerusalém e dos reinos de Israel e de Judá, o exílio na Babilônia e a dispersão do povo em várias regiões. Deuteronômio é a “segunda lei” não como uma mera repetição, mas como uma retomada ou atualização da lei de Deus dentro das novas realidades enfrentadas pelo povo escolhido em sua história conturbada.
Podemos considerar o Deuteronômio também como uma espécie de testamento espiritual de Moisés. Antes de encerrar sua missão e confiar a liderança a Josué, Moisés faz uma revisão de toda a história, desde os tempos da escravidão no Egito até a permanência na terra prometida. O grande ensinamento do Deuteronômio é que a fidelidade a Deus e à aliança são a garantia da permanência do povo na terra que lhe foi oferecida como um presente divino. Ser fiel a Deus equivale a ser abençoado! Mas se a infidelidade desviar o coração das pessoas para a idolatria e o esquecimento dos mandamentos, então o povo perderá o direito à posse da terra e atrairá sobre si as maldições previstas em Dt 28,15-46. A terra é dom de Deus e compromisso do povo. A conservação da terra exige fidelidade e observância de todos os mandamentos que Israel assumiu ao celebrar a aliança com o Senhor.
No Deuteronômio encontramos as leis mais humanitárias do Antigo Testamento, as quais demonstram uma profunda sensibilidade com o bem do ser humano e o empenho de ajudar os mais pobres e sofredores, representados pelo órfão, a viúva e o estrangeiro. Estas três categorias eram os excluídos da sociedade daquela época e, por isso, recebem uma atenção especial da legislação deuteronômica. São Jerônimo afirmou que o Deuteronômio é uma “prefiguração da lei do Evangelho”, dada a ênfase no mandamento do amor a Deus, que deve ser concretizado no amor ao próximo. Este livro esboça o sonho de uma sociedade justa, fraterna e solidária, atenta aos apelos de Deus e às necessidades do ser humano.
Na mudança de época que vivemos e diante dos desafios da atual crise da pandemia, torna-se urgente acolher a proposta do Deuteronômio: “Abre a tua mão para o teu irmão” (Dt 15,11), assumida como lema deste Mês da Bíblia. O compromisso da fraternidade é um tema central na reflexão do Deuteronômio e podemos dizer que é o remédio necessário para curar a sociedade das doenças da indiferença, do descarte, do egoísmo e da acumulação. Que o conhecimento deste livro nos leve à prática do amor fraterno, oferecendo nossa contribuição efetiva para melhorar a qualidade de vida do nosso povo.
Mons. Celso Murilo Sousa Reis