Diz o ditado popular que contra fatos não há argumentos! Iniciemos nossa reflexão apontando, então, dois fatos. O primeiro, um número: 820.000.000. Oitocentos e vinte milhões! Esse foi o número apresentado pela ONU, em 2018, e representa o número dos seres humanos que passavam fome no mundo naquele ano! Com dados atualizados, certamente, esse montante deve ser maior. O problema aqui é que provavelmente quando você estiver lendo, com certeza não se identificará com este grupo, assim como eu, no momento em que escrevo, também não me identifico. Desse total, mais de quarenta e dois milhões são da América Latina. O segundo fato, um outro número: R$ 964.800.000.000,00. Novecentos e sessenta e quatro BILHÕES e oitocentos milhões de dólares. Esse montante representa a soma da fortuna dos dez homens mais ricos do mundo. Os fatos não negam: há um abismo quase intransponível entre um fato e outro, entre a extremada miséria de tantos e o prazer quase doentio de posse e acúmulo nas mãos de tão poucos. Ah, mas aqueles não souberam aproveitar suas oportunidades, dirão uns. Estes outros fazem muita caridade também, dispararão outros; e afinal, devem ter merecido toda essa fortuna! Pior ainda, a esses faço questão de nem perder tempo em escutar, quando dizem: mas essa é a vontade de Deus!!! Mas é melhor mudar o rumo da prosa, sob o risco de me taxarem de comunista!!! Na verdade, valho-me dos dois fatos tão somente como pretexto para compreender as EXIGÊNCIAS ESPIRITUAIS do tempo do advento que iniciamos. Isso mesmo.
Em algum lugar de minha memória, recordo uma das falas do bispo que foi indicado mais de três vezes ao prêmio Nobel da Paz, relatando uma experiência que fez numa comunidade extremamente pobre. Tendo se atrasado um pouco para chegar ao local da celebração, admirou-se de, lá tendo chegado, encontrar o povo reunido, cantando o Salmo 22: “o senhor é meu pastor, nada me pode faltar. Em verdes pastagens me faz repousar e para águas tranquilas me conduz, restaurando as forças de minh’alma”, e enquanto cantavam, o Dom via seus rostos esquálidos, via uma pobreza tamanha que beirava a miséria; via pés descalços batidos de terra, lama e suor; mãos calejadas de forçar a dura terra a dar frutos diminutos frente a fome tamanha, não somente fome de pão, mas de justiça e paz; via sofreguidão. Nada tinha aquele povo, embora cantassem tudo ter, e de fato tudo tinham, pois confiavam no Senhor que costuma, como bem sabemos, ouvir os clamores dos seus. Por isso o Dom via também esperança e cria na possibilidade de novos céus e nova terra. Acalentava no coração, naquele momento celebrativo, todo sentido adventício de um natal que necessita, ainda hoje, acontecer.
Mas diferentemente dos fatos apresentados no início da reflexão, não temos aqui, entre Deus e os pobres, nenhum abismo intransponível. O Deus que se revelou em Jesus Cristo, vendo os sofrimentos que afligiam o seu povo, desceu para os libertar. Da parte de Deus não há incongruência alguma! Seu amor é para sempre, sua fidelidade dura sempre, e sua misericórdia é eternal, renovada de geração em geração. A incongruência, e isto também é um fato, é a de nossa parte, por nem sempre vermos a realidade com os olhos de Deus, e nem sempre nos empenharmos e nos solidarizarmos em construir pontes entre esses abismos. Pior ainda: costumamos repetir em nosso pequeno mundo e relações pessoais a mesma lógica de uma pestilenta separação e distanciamento.
Não sem razão, o Papa Francisco, neste primeiro domingo do advento, nos conclamou a vivermos este tempo favorável de proximidade e vigilância, vencendo o sono da indiferença e a mediocridade, ainda que relativamente isolados pelo medo que o invisível vírus ainda nos inspira. Há, inevitavelmente, uma relação diretamente proporcional: Deus se faz próximo a nós a fim de que também nós façamo-nos próximos dos irmãos e irmãs numa opção preferencial aos mais necessitados. Despertados do sono da indiferença, devemos nos despojar das obras das trevas, da iniquidade, das injustiças e vestirmo-nos das armas da luz: fé, esperança e caridade (Rm 13, 11-13). Somente assim seremos capazes de vencer esta que é a consequência maldita da indiferença: a mediocridade, que nos faz ver a realidade dos sofrimentos de tantos e tantas e o considerarmos banal, trivial.
Não nos iludamos: no tempo do Advento, vigiar e amar não se diferenciam. São a mesma e única atitude de quem, sabendo em quem depositou toda a esperança, clama de todo o coração: MARANATA, vem Senhor Jesus. Não fosse assim, a vigilância se tornaria uma atitude passiva numa espiritualidade alienante e que em nada corresponderia à atualidade do espírito de Cristo em nós. Pelo contrário, a vigilância amorosa que brota do coração tocado pelo espírito de Cristo nos torna outros Cristos, ressurretos, Evangelhos Vivos no coração de um mundo adoecido. Como está escrito, “aquele que crê em mim fará as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas!” (João 14, 12). Que o Senhor não nos encontre dormindo!
Diácono Robson Adriano