Creio não ser erro afirmar que entre as dez classes gramaticais que podemos indicar em nossa pátria língua, há uma analogia quase natural entre Deus e os verbos!! Sim. Estou convencido de que Deus se conjuga de “vários modos” e infinitas flexões, envolvendo-nos, na graça do tempo presente, desde o imemorial passado de nossa humanidade até o definitivo futuro que só ele amorosamente governa. E levando-se em conta que os verbos contêm semântica e basicamente a noção de processo, estado e ação, temos que concluir: conjugar os verbos ver, compadecer-se e cuidar pode nos salvar! Como? Explico-me.
Ver pode ser mais que enxergar, mais que um fato que dependa unicamente e exclusivamente do aspecto físico da visão. Disse pode ser porque depende se aceitarmos ou não o testemunho do Espírito. (cf. João 3, 32). Neste caso ver é sinônimo de reconhecer e necessita mais do coração do que dos olhos. Trata-se de um processo que, passando naturalmente pelos olhos, vai além deles. Trata-se de ter “entranhas de misericórdia”, como se expressa tantas vezes o papa Francisco em relação a Deus, e com razão. A Palavra de Deus nos atesta, numa página verdadeiramente reveladora: “Os egípcios escravizaram, pois, os filhos de Israel com brutalidade e amargaram-lhes a vida por meio de uma dura servidão (...) os filhos de Israel gemeram do fundo de sua servidão e clamaram. Do fundo da servidão, o seu clamor subiu até Deus (...) Deus se lembrou de sua aliança. Deus viu os filhos de Israel; Deus se apercebeu (...) O senhor disse: Eu vi, vi a opressão do meu povo no Egito (...) desci para libertá-lo”. (Êxodo 1, 13. 2, 23b-24. 3, 7a. 8). Deus viu!!! Reconheceu a necessidade de seu povo. Viu a partir da essência de seu ser que é o amor (1João 4, 8) e honrou sua promessa fazendo-nos conhecer sua benevolência, enviando-nos o eterno Bom Samaritano.
Ver com o coração é, consequentemente, aperceber-se, compadecer-se, ou seja, mover-se por piedade, compaixão, que terminologicamente nos remete a “padecer com”. Portanto, não tornar-se alheio, não ser indiferente. Trata-se de envolver-se, assim mesmo como Deus fez conosco: desceu para nos libertar enviando-nos seu Filho que é, para nós, o rosto da misericórdia do Pai. Em Jesus, Deus continua nos vendo e se compadecendo, pois “é bom, para sempre é o seu amor” (Salmo 136(135)1) e quem vê a Jesus,vê o Pai (cf. João 14, 9c). Conjugando-se sempre pelo tempo presente, Deus continua nos vendo: “Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, pregando a Boa Notícia do Reino, e curando todo tipo de doença e enfermidade. Vendo as multidões, Jesus teve compaixão, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor”. (Mateus 9, 35-36). Jesus viu e compadeceu-se!! Diríamos: tal Pai, tal Filho!! “Quem me vê, vê o Pai”! (João 14, 9).
E tal analogia entre Deus e a classe gramatical verbal que estamos fazendo não termina aqui. Ver e compadecer-se só se tornam verdadeiramente reais se se tornarem cuidado, ação plena do amor que, como vimos, constitui a essência mesma de Deus. E nestes tempos que são os últimos, o Espírito Santo é quem atualiza para nós, em nós e através de nós, os cuidados de amor de Deus, pois ele, o Espírito, “testifica o que tem visto e ouvido” (João 3, 32)! Para nós, porque cremos em Deus e somos alvos de seu amor. Em nós, porque fomos todos batizados no mesmo Espírito que nos faz compreender a obra do senhor Jesus. Aderindo a esta obra, fazemos parte “do caminho” que é o próprio Cristo e o Espírito atua, age em nós. Através de nós porque inseridos no Cristo somos cristãos, ou seja, onde Ele deveria estar nós estamos, o que ele deveria fazer, nós fazemos, pois Ele mesmo disse: “quem acreditar em mim, fará as obras que eu faço, e fará maiores do que estas (...)” (João 14, 12). Ou ainda, o “Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos, e os enviou dois a dois, na sua frente, para toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir” (Lucas 10, 1).
VER, COMPADECER-SE E CUIDAR tornam-se, assim, no âmbito da fé, “verbos salvadores”, na exata medida em que forem conjugados em nossa existência, através de nosso modo de ser, agir, pensar e sentir. No processo de nossa fé, de nossa conversão, temos que nos deixar conquistar, seduzir por Deus e agir conforme o seu Espírito nos inspira. Muitos irmãos e irmãs nossos permanecem esperando nossa fé posta em obra, as obras de misericórdia espirituais que atualizam o amor que temos a Deus, no amor que devemos devotar aos que são nossos próximos: os que necessitam serem cuidados exatamente porque os vemos e deles nos compadecemos. Afinal, “quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” ( 1João 4, 20b). Isso é sério! Tão sério que somos convidados, neste ano de 2020, a conjugar nossa vida redescobrindo nossa vocação samaritana, na família e na sociedade! Este é nosso maior DOM. Este é nosso maior COMPROMISSO, nossa missão. Santa Dulce dos Pobres nos ajude a conjugar tais verbos!
Diácono Robson Adriano