Tive no período da Faculdade de Direito uma grande professora Drª Luciana Dadalto. Pesquisadora, bioeticista comprometida, cujas pesquisas acerca do fim da vida – passando pelos cuidados paliativos, testamento vital e outros assuntos tão negligenciados – elevam seu cabedal argumentativo e acadêmico a níveis de considerável respeitabilidade nos campos da ciência, de modo especial para o Direito, a Medicina e obviamente para a Bioética.
Dias passados, em sua página no Instagram, traduziu livremente um texto da paliativista Sunita Puri publicado no jornal “The New York Times”: É possível estar pronto para morrer? O texto traduzido possui uma carga simbólica muito forte conduzindo nossas consciências àquela pergunta inquietante.
Quem ouviu aquela tradução, de fato, não permaneceu sem se questionar, sem ser levado a ponderar várias considerações sobre o tema, a partir, claro, de universos vivenciais completamente diversos da vivência de um médico. Às proposições sucederam provocações racionais que emanam dos questionamentos: estamos prontos para morrer? Estamos prontos para deixar morrer?
Ecoando, pois, essas provocações, resolvi também escrever!
Montaigne, um filósofo arguto, por vezes ácido, disse em seus Ensaios: o fim de nosso caminho é a morte, esse objeto necessário de nossa mira; se ela nos assusta, como é possível dar um passo à frente sem agitação? O remédio do vulgo é não pensar nela. Mas que brutal estupidez pode ocorrer-lhe cegueira tão grosseira? É colocar a rédea na cauda do burro...
Na história da humanidade um fato incontestável, até nossos dias, é que tudo que nasceu com vida tenderá à morte biológica e, isto, versa sobre a finitude, sobre o indelével fim.
Sunita e Montaigne, embora distantes no tempo, discutem algo importantíssimo e que, habitualmente, temos descuidado e a ausência dessa discussão cada vez mais nos distancia de uma urgência esclarecedora acerca de nosso comportamento frente a morte (processo) e a finitude (concluir). Falar sobre essas figuras da existência é colocar diante de si, a necessária pergunta capitular: estamos prontos?
É possível ainda extrair do texto de Sunita Puri que o autoconvencimento sobre a finitude não é conversado e tal ausência é uma forma de não ajudar e não ser ajudado para o momento do fim. O autoconvencimento é o ponto de convergência entre o ir morrendo e a chegada à finitude.
A morte ou o ir morrendo é um ato contínuo, espontâneo e independente a cada ser vivo. Ele possui uma função específica que é apontar e levar à finitude. O fim nos espera em algum canto de nossa personalíssima vida. A morte está sempre aí, caminhando ao lado do ser humano.
A morte está aqui, ali e aí, ela não estende a mão, apenas está ao lado. Ela não abraça e nem sufoca ninguém, ela simplesmente está e tal presença lembra sobre a finitude, que uma hora chegará o momento “indesejado”, a energia acabará, a entropia mostrará sua razão de ser.
Partindo deste ponto de vista, os sinais mortuários poderiam ser ressignificados em nova perspectiva? Possivelmente sim e isso poderia cooperar muito sobre o desejo de estar pronto. O estar pronto pode se dar quando o olhar sobre as perspectivas de morte é mudado, disto, nascem novas possibilidades e significados ante o simbólico da morte.
Quando se vai a um velório, aquele local cuja lei do silêncio nunca será respeitada, não é a morte que se vislumbra, o que se contempla então? A finitude. Os atestados de óbito atestam apenas a causa do fim e não a morte. Velórios são espaços onde se encerra a finitude. A morte se atesta no existir, ela é um estado de ser oculto, pedagógico e sincero, por isso, sempre independente.
Podem ser revisitados os leitos dos hospitais, como Sunita e tantos outros paliativistas apresentam. Aqueles lugares do fim, podem ser o “local do espelho” onde não se mira a vaidade, mas o medo de morrer, o medo do fim, mira-se o que foi vivido. Do espelho vislumbra-se o ir morrendo de uma vida toda e, passo a passo, a tessitura da vida é lentamente paralisada. De suspiro em suspiro as ilusões serão desfeitas e toca-se a realidade do fim. A doença em alguns casos será o mecanismo para o fim, o espelho é a constância do pensar sobre o fim e o reflexo pode ser dono de um incômodo mais profundo que a própria enfermidade.
A finitude, de outro lado, também é um ato que se realiza de várias maneiras, de um acidente de carro a um mal súbito, porém ela sempre será estática quanto à sua finalidade. A finitude é ato em um leito de hospital, em uma bala perdida, em uma festa de bodas de casamento, em uma missa. A finitude é o caráter do ir morrendo, um rompimento e embora realizado de maneiras diversas e finitude é um cessar. A finitude “imatura” é julgada. A finitude “madura” é considerada certa e quase uma virtude.
Mas e a morte? A morte está ali lembrando, no caminho, a finitude.
Lidar com a morte e com a finitude será sempre um problema equânime ao da não aceitação da companhia constante da morte e, por não se compreender que ela nos entregará à finitude, o estar pronto não será uma fase do existir, mas uma demanda do fim, angustiado e solitário. Quanto mais e melhor os diálogos maduros sobre esse assunto forem postos em sociedade, nas comunidades acadêmicas, famílias, comunidades religiosas, menos complexo será aquele estar pronto.
A morte (ato contínuo) está ligada à capacidade racional de perceber e compreender o momento da finitude. A finitude está ligada à capacidade racional de compreender que o ponto final não tem forma certa de se dar e que ela é ato absoluto para tudo que vive. A finitude não está atrelada às enfermidades como forma potencial de fim de vida, por essa razão não pode ser alvo de investigação da pessoa em qualquer campo onde transite nossa humanidade, quer seja nas religiões, nas ciências diversas que se ocupam com a morte. A finitude não aceita o esperneio do ser humano é ato conclusivo e pronto.
O ir morrendo é o processo de chegada à finitude, ele que se leva aos laboratórios, aos diálogos médicos, filosóficos, teológicos, jurídicos, bioéticos estas áreas do saber e tantas mais ocupam-se deste gerúndio. A iniludível, como diria Manuel Bandeira, traça a vida humana, tece e costura tudo na vida, depois entrega a história à tesoura da finitude. Portanto, entre a morte e a finitude cabe uma virada na estrutura do pensar, uma motivação básica e imediata, qual seja, a morte é o caminho para a finitude e o caminho determina a forma consciente de como se chega ao ponto final.
Não sou paliativista, portanto não convivo com o processo de morte e com o fim da mesma forma que esses médicos, mas lido com a morte noutras proporções e intensidades. Encontro-me com ela nas casas, hospitais, nas ruas e estradas e nessas horas vejo que a finitude se aproxima e que ela não tem método, então, nesses momentos pode-se perceber pairando no ar a pergunta sobre qual é a forma da experiência sobre o “estar pronto” para o fim.
Uns bons anos atrás fui chamado para ir a um hospital visitar uma pessoa que, como as demais espalhadas pelo mundo, estaria morrendo. Chegando ao hospital fui imediatamente conduzido ao box dentro do CTI onde estaria a “quase morta”. De fato, ela estava debilitada, estava morrendo, percebi que meu ofício seria exercido de outra maneira.
Aquele rosto pálido foi se virando devagar e os sonolentos olhos azuis miraram meu rosto. À custa de certo esforço, uma palavra suave foi-me dirigida com uma pergunta: “chegou minha hora?”, respondi que seria provável, mas que estávamos ali com ela. Eu não daria diagnósticos, só poderia estar ali. Dois de seus filhos estavam atrás de mim e silenciosamente acompanharam um diálogo frágil e sincero (sem revelações) e também os passos certos para a finitude.
Ela dizia sobre estar cansada, que sentia que já não era a mesma pessoa, que havia mudado, que o cobertor não esquentava, que estava sempre fria, que via tudo muito distante e segurando minhas mãos exclamou: “sinto que algo me foge!” Seria a sabedoria recém descoberta que Sunita disse no seu texto?
Quando ouvi “algo me foge” e, trazendo aquela memória para hoje, entendo que estar pronto ou pronta para a finitude é se dar ao processo de morte com suavidade e sinceridade. É perceber o recado de que tudo não será como antes, perceber o “ir morrendo”, o moribundiar diário, que cada um muda e em cada mudança, um pouquinho de nossas cinzas caem no chão da existência comum, até que tudo nos foge definitivamente.
Compreender a morte ou o morrer é compreender que a finitude nos espera em algum canto, em algum momento ou lugar, cedo ou tarde. O que se faz nesse breve espaço de tempo cronológico e biológico pode dar a cada um uma consciência melhor da finitude. Enquanto somos, a morte sempre será a possibilidade que nos levará à finitude biológica, assim, estar preparado para a finitude é viver a possibilidade da morte no cotidiano, contudo, sempre haverá um “algo mais” que não se pode tanger, um silêncio...
Isto poderia soar sombrio, desperançoso, mas não! Olhar para quem está morrendo ou para um corpo sem vida caberá a possibilidade de se fazer uma opção que é decidir viver tendo consciência do fim e isto não é trágico, é temperança. Enquanto ainda somos, vamos percebendo que a vida está fugindo, mas ela ainda é presença. Enquanto não formos roubados de vez, a expectativa sempre será edificadora do existir consciente da presente e dicotômica didática de que estamos vivos, porém morrendo. E como disse o mesmo Montaigne dar-se conta de que “a cada minuto parece-me que escapo de mim”.
Para o filósofo é preciso retirar da morte a estranheza e apresentá-la às nossas consciências com franqueza e constância e que pensar sobre a morte é pensar sobre a liberdade. Que saber morrer é ver-se livre de toda sujeição e coerção. Logo, não se pode parecer pronto para a morte enquanto houver a prisão da estranheza e do distanciamento reflexivo. Se ela não é uma ilusão, não se pode deixar iludir sobre sua ausência. Aceitar a finitude é vislumbrar um destino comum da humanidade, disto, há liberdade.
Aquele “chegar lá” que Sunita expressou é o “algo me foge” da senhora que visitei no CTI. O chegar lá é a visão de quem está do lado de fora. O algo me foge é a visão de quem está do lado de dentro. O chegar lá e o deixar fugir se dão na possibilidade do enquanto se vive. Perceber que estamos chegando à compreensão do fim é perceber o quanto se deixou fugir, o quanto de nossas cinzas já caíram na estrada. Só se pode ajudar o outro a morrer quando se compreendeu que a morte está ali do meu lado também, mostrando para mim a inexorável finitude.
Assim, morte e finitude são afins e contemporâneas do existir e, portanto, componentes comportamentais do humano que deve se perguntar sempre sobre sua finitude, compreendendo sempre que ao longo da vida “algo nos foge” que “a nossa vez” pode estar a um segundo do término deste texto. Estamos morrendo, até que um dia o ponto final é posto na história de cada um, independente se houvermos respondido ao questionamento de estarmos prontos ou não.
À expressão de Sunita, essa é uma “verdade dura”, refere-se à certeza da finitude. O “agora é só a minha vez” é a expressão da liberdade em poder ir, sem estranheza.
Estar pronto para morrer?
Acaso alguém aqui estava pronto para nascer?
Não nos perguntaram ao nascer se estávamos prontos. Não recebemos uma cartilha que nos ensinasse a viver. Não temos a cartilha do “estar pronto para morrer”. Tudo é um caminho que se dá no acontecimento da vida, aprende-se a morrer vivendo. Vive-se bem morrendo.
Estamos prontos para essa biológica dura verdade?
Pe. Jean Souza