O Tempo Comum é o tempo em que a Igreja se encontra com o Senhor na caminhada onde acontece o anúncio do Reino de Deus. Trata-se de contemplar a caminhada de Jesus com os seus discípulos, entendemos que é verdadeiramente o Emanuel mostrando a que veio, estar conosco, anunciando a cada um de nós o Mistério do Pai, pelo Filho, no Espírito Santo. Deus que caminha conosco e nos revela sua face, sua missão e nos chama a estarmos com Ele neste mesmo caminho que é verdadeiro e nos concede a vida em plenitude.
Hoje, de modo especial o cenário que Marcos nos apresenta é consideravelmente dramático e insere a comunidade naquela realidade profunda do Evangelho que muitos de nós não podemos negar como premissa fundamental de nosso compromisso com o Senhor, embora muitos queiram negá-la.
Jesus, que caminha com os seus, inicia uma série de anúncios sobre sua Paixão revelando aos discípulos que o Filho do Homem haveria de sofrer e morrer. Ele haveria de ser condenado, seria odiado, vilipendiado de todas as formas possíveis entre os que detinham o poder, seria o inocente condenado a morrer. Ele é enfático e objetivo: o Filho do Homem vai ser entregue aos sumos sacerdotes e aos doutores da Lei. Eles o condenarão à morte e o entregarão aos pagãos. Vão zombar dele, cuspir nele, vão torturá-lo e matá-lo. Esta narrativa, ao que parece, como gostamos de dizer entre nós, “entrou num ouvido e saiu n’outro”, os discípulos não deram atenção, não se admiraram. Quedaram-se na mais absoluta relatividade até o ponto de se perderem quanto à realidade do Evangelho.
Notem, embora o Evangelho de Marcos seja curto, apenas 16 capítulos, esta cena se enquadra no cap. 10, no terceiro anúncio da Paixão. Os discípulos, na narrativa de Marcos, já haviam caminhado com Jesus tempo considerável e já haviam ouvido o Senhor sobre sua morte, e nesta cena, não há informações sobre um possível não entendimento dos discípulos como em Mc 9,32. O segredo messiânico, ainda lhes estava oculto...
Contudo, no primeiro anúncio da Paixão (Mc 8,31ss), existe uma reprimenda de Jesus quanto às declarações petrinas – “arreda-te de mim, satanás, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens!” – aqui, Jesus acerta passo com os discípulos e os chama a caminharem no caminho de Deus, pensar nas coisas de Deus, pensar em tudo o que lhes é revelado. Provavelmente, toda caminhada ganharia nova configuração, contudo, no segundo anúncio da Paixão, nada compreendem, sobretudo, o tema da ressurreição.
Marcos, no texto da liturgia de hoje, mais uma vez insere a narrativa da Paixão entre os temerários discípulos. Subir a Jerusalém é símbolo de novo êxodo, de uma necessária mudança, nova Páscoa que se aproxima, mas eles não compreendem essa realidade e atônitos divagam sobre outros temas, periféricos...
Um lugar privilegiado. Sim, os filhos de Zebedeu querem um lugar privilegiado, de destaque e honra. Mas como podem? Logo após a narrativa da Paixão onde Jesus expõe as dores ocasionadas pelo martírio que sofrerá? Os discípulos ainda não estão maduros e por isso, inseguros quanto à caminhada, aventuram pelas periferias do mundo, pelas periferias que satanás os oferece. Os discípulos deixam de pensar nas coisas de Deus e assumem as realidades de um universo paranóico em busca de poder e destaque.
Mais uma vez Jesus terá que dizer aos discípulos sobre as realidades da caminhada para que o mortal tentador se afaste dos seus, neste caso o fará de modo diferente. Como? Jesus ensina, esclarece e ilumina.
Após a invectiva dos filhos de Zebedeu, Jesus os questiona se poderão beber o mesmo cálice que Ele e serem batizados no mesmo batismo. Aqueles respondem prontamente que sim! Mas será que têm noção do que Jesus lhes diz? Neste caso, o cálice não faz referência ao cálice da ceia pascal que será celebrada com Jesus e os seus, a figura do cálice é imagem do sofrimento que alguém deve engolir – “um deles, correndo, encheu uma esponja de vinagre e, fixando-a numa vara, dava-lhe de beber” Mc. 15,36; Mt 27,48; Sl, 69,22 “como alimento deram-me fel, e na minha sede serviram-me vinagre”; Lc 23,36; Jo 19,28-30.
Lado outro, o batismo mencionado por Marcos, não se refere ao sacramento que já conhecemos e buscamos viver em nosso cotidiano de fé (em nosso tempo comum), mas faz referência simbólica à purificação violenta, o futuro martírio que compartilhariam com o Senhor. Jesus não os “livra” do mesmo destino, do destino comum. Sim, eles beberão do mesmo cálice e serão batizados no mesmo batismo, mas lugar de privilégio, eles podem esquecer, isto é decisão que não os compete, nem sob um pedido solene, por estar tudo preparado por Deus!
Mais uma vez o tema do poder é posto junto ao tema da Paixão e da entrega de Jesus. A nascente “revolta” dos discípulos ao ouvir o pedido dos irmãos trovão pode ser posta no sentido pleno da vaidade: como assim? Eu também quero uma beiradinha no lugar especial! Mais uma vez Jesus tem que intervir...
Ser grande não é ter o poder como os “poderosos deste mundo”, os poderosos que ouviram outra voz, a voz que não é a de Jesus. Os poderosos pagãos aos quais foi entregue Jesus para ser morto, os poderosos que possuem a autoridade religiosa, mas não reconheceram Jesus (e muitos até hoje não o reconhecem) e, por isso, agem de modo contrário à proposta do Evangelho, ligando-se mais aos poderes, honras e pompas que ao serviço do Evangelho. Jesus ensina de modo absoluto e irrevogável que o Filho do Homem, que vai ser morto, tem uma missão que será comunicada a todos que desejam segui-Lo, o Filho do Homem veio para servir e não para ser servido. Veio para descer às realidades mínimas e fracassadas da vida humana que doem por serem feridas que podem matar. O serviço é o que cura o sofrimento humano.
Não há, portanto, lugares de honra, mas há uma missão honrosa: servir. Neste sentido, descobrimos ainda mais a face do Servo Sofredor que Isaías nos apresenta (Is 52, 13 ss.). O servo sabe como faz o seu Senhor e age da mesma maneira. Lá no momento do “lava pés”, quando Jesus retoma sua autoridade/amor nos diz: “Compreendei o que vos fiz? Vós me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem, pois eu o sou. Se, portanto, eu, o Mestre e Senhor vos lavei os pés, também deveis lavar-vos uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais”. Aqui a lógica do poder é amar no acolhimento e no serviço.
Naquelas horas se descobre o caminho do martírio. Morremos um pouco naquilo que fazemos em nome do Evangelho e isto irá doer. Doar-se é doar a vida, não um momento isolado em nossas histórias. Morremos porque se abaixar exige deixar aquilo que em nós é realidade carcomida pela vaidade e desejo de poder, para assumirmos com o Cristo as realidades do céu aqui, onde estamos plantados, e edificar o Reino de Deus.
Pe. Jean Lúcio de Souza