Alguns eventos que manifestam a vivência dos discípulos e do povo com Jesus se repetem em alguns textos evangélicos como testemunho comum da experiência de intimidade com o Senhor. O momento da multiplicação dos pães está presente em todos os quatro Evangelhos (Jo 6,1-15; Lc 9,12-17; Mc 6,-35-44; Mt. 14,13-21), simbolizando, embora, com algumas diferenças interpretativas, um pano de fundo comum.
Hoje, de maneira especial, o encontro com Jesus demonstra uma atenção que se volta para um todo muito interessante.
O destaque do “lugar deserto e afastado” sugere uma saída estratégica de Jesus, uma inversão quanto ao interesse de Herodes sobre Jesus. A confusão feita pelo Tetrarca faz com que o Senhor se afaste do olhar herodiano.
Outro ponto interessante é a compreensão de que, embora o deserto seja visto como o campo do isolamento, da reflexão e do reconhecimento de si e da missão pessoal diante de Deus é também o lugar da aridez do confronto individual. Neste sentido pode-se compreender que a ida do povo ao deserto seja vista como a busca da compreensão de si diante de Jesus, o encontro personalíssimo de cada um que se retira junto com o Senhor para o deserto. A busca por Jesus é a busca pela fonte de água viva no deserto da existência, a busca por ser saciado diante das incongruências de cada um.
Nesse momento do encontro com o Senhor, Ele se move em compaixão. Aqui a compaixão é lembrada como um “ser-com”, um estar presente conosco. Sentir-se envolvido com esses momentos de dúvida e medos que a vida provoca em cada um de nós causando em nós inúmeros momentos de desertos e ansiedades múltiplas. No deserto Jesus e os discípulos se encontram com uma parte essencial da vocação que é a dimensão do cuidado. Aqui, quem sabe, pode-se fazer alusão ao zelo pela outra habitação do Senhor. Que habitação seria esta? Cada um de nós somos morada de Deus e Jesus se compadece também pelo zelo desta casa, desta morada, o zelo pelo e o cuidado com o templo da imagem de Deus estampada em cada um de nós, em cada pessoa humana, por isso, o movimento é de atenção, proteção e cuidado.
Neste sentido Jesus provoca a Igreja, através dos discípulos – dai-lhes vós mesmos de comer – ou seja, a comunidade deve descer ao cuidado de todos por todos. Trata-se daquele ditado cunhado pelos “Mosqueteiros” um por todos e todos por um. A Igreja deve se preocupar em saciar o povo, deve se preocupar em saciar cada pessoa na individualidade. Aqui encontra-se a maturidade da Igreja, uma comunidade cujo cuidado é plano essencial de nossa vocação.
Contudo, esse cuidado não se dá de qualquer forma, é preciso o mínimo de organização. O pedido de Jesus em que todos se assentassem é o protótipo do princípio máximo da isonomia e da equidade. No universo jurídico há um princípio importantíssimo, segundo o pensamento de Ruy Barbosa: “a tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades”. Este princípio impõe que todos sejam tratados conforme as disposições vitais pessoais e comunitárias. A organização da comunidade, quer eclesial, quer social, obriga ao olhar cada vez mais humano, onde se conhece entre os iguais, suas fragilidades e necessidades, bem como suas potencialidades, onde todos estendem as mãos na busca proporcional e razoável do socorro e do cuidado em todas as dimensões da vida humana. Utopia? Jamais! Esta é a objetividade do Evangelho, ou tudo, ou nada no campo do cuidado. Radicalidade essencial em nossa vocação.
Assim, todos poderão ser atendidos em suas necessidades: homens, mulheres, crianças, idosos, enfermos, pobres e ricos. Todos são iguais segundo suas desigualdades diante do Senhor. Todos serão atendidos a partir também daquilo que cada um traz como contribuição de vida; mesmo que os pães e os peixes pareçam poucos, Jesus insiste na partição de todos (trazei-os aqui), na gratuidade do dom, alimentam todos de forma equânime. Tudo se transforma quando somos generosos e depositamos nossas esperanças no Senhor.
Terminando o momento tudo deve ser recolhido. Mais uma vez a ideia da organização surge. Nada deve se perder e ao mesmo tempo "o recolhei" significa também a participação de todos na Igreja. Quando se organiza a vida, todos são saciados e a abundância dos pães e peixes significa mais uma vez que todos recebem atenção segundo suas necessidades. Diante do pensamento eucarístico, todos somos pão. Todos somos alimentos no Senhor e o que nos fortalece não pode se perder, deve ser recolhido, protegido, guardado. Lembro-me de nossa participação também na cultura do cuidado com o alimento material e o alimento eclesial.
Não se pode desperdiçar e não se pode deixar perder o que nos sacia a todos. Embora o pão seja fruto do árduo trabalho humano, é dom de Deus dado a saciar todas as pessoas, da mesma maneira que a Eucaristia é dom a todos concedida pelo Senhor para que o povo não esmoreça na caminhada. Na Eucaristia o Senhor nos olha com compaixão, ali Ele é conosco e nos descobrimos Nele em cada “amém”. Somos saciados Nele para saciarmos a todos, cuidando e zelando pela vida humana para que nada e nem ninguém se perca por falta de carinho e cuidado.
Coragem! Sigamos firmes no propósito do Evangelho de sermos sempre, ao mesmo tempo, o lugar do cuidado e a expressão do cuidado no chão deste mundo, partilhando o que somos e o que temos juntos com Jesus.
Pe. Jean Lúcio de Souza