Irmãos e irmãs,
Herodes certamente tem de se perturbar: quem é este homem, quem é Jesus? Jesus é a justiça de Deus a qual João Batista foi o precursor. Essa mesma justiça, esse ajustar-se à vontade de Deus e que fora anunciado em alta voz pelo Batista, encabulou Herodes, que “reconhecia” seu erro ao ouvi-lo. O evangelista chega a dizer que o rei gostava de ouvir João. Seria acaso um processo de mudança de caminho que estaria acontecendo na vida de Herodes? Não saberemos ao certo, contudo, sabemos bem que o ódio de Herodíades foi superior à proteção do rei Herodes, assim, João paga com a vida seu compromisso com Deus, ou seja, o compromisso com a justiça e a verdade.
João é o precursor do Senhor preparando-lhe o caminho e apresentando o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. João também será o precursor no martírio, na entrega total de si ao compromisso com a vontade do Pai. João também declara no Cristo: eu vim fazer com prazer a vossa vontade Senhor!
Ele morre!
O compromisso com a justiça que, em outros momentos já havia conversado com vocês, significa adequação de nossas vidas à vontade de Deus, ajustar-se à vontade de Deus, pode valer-nos a cabeça em algum momento. Aí a gente sempre se pergunta: nossas cabeças estão ainda sobre nossos pescoços?
Ajustar-se à vontade de Deus significa que iremos nos entregar aos leões sociais, a tanta gente que pensa apenas em gerenciar e aplicar o mal no mundo. Nestas horas é que descobrimos (ou descobriremos) como colocamos nossos pescoços em risco. A realidade humana, embora nos apresente grandes bênçãos e alegrias com relação às obras de bondade, serviços de unidade e paz, ainda apresenta muitas obras que concorrem com o bem e a misericórdia, transformando o mundo em que vivemos em um palco onde a discórdia encena seu papel e a plateia, atônita, aclama com suas palmas a derrota de nossa gente.
Todas as vezes que nos encontramos com as manifestações do desajuste com a vontade de Deus e nos quedamos em silêncio, nossa omissão é coparticipação naquele mal. Quando nos encontramos com a fome do outro e nos silenciamos, estamos fomentando ainda mais a fome, quando nos encontramos com a destruição interior e exterior do outro por vias sociais como falta de saúde, saneamento básico, falta de educação de qualidade, ausência de respeito ao meio ambiente e à vida integral e global, atitudes não concretas de cidadania e respeito ao lugar onde vivemos, quando assinamos silenciosos o compromisso com ações políticas que favorecem os poderosos e desfavorecem as classes mais necessitadas de nossas sociedades, não colocamos nossas cabeças a prêmio, contudo, matamos os outros por ações que banalizam a maldade.
Lado outro, quando nos insurgimos contra os sinais de horror humano, colocaremos nossas vidas em risco. Lembro-me agora de Santo Oscar Romero, um santo de nossos dias que tenho particular carinho e devoção, foi bispo de El Salvador, assassinado em 1980, por se insurgir contra os ditames de um regime autoritário que subjugava o povo que Deus o havia entregue para pastorear. Perdeu sua cabeça...
Vale a pena ver o que o site do Vaticano diz sobre essa justeza:
Padre Romero foi pároco, reitor de seminário e, enfim, Bispo auxiliar, enquanto as nuvens se tornavam cada vez mais escuras, no horizonte político salvadorenho: forças governamentais, grupos paramilitares e guerrilhas eram sempre mais violentos. Vários grupos de pobres oprimidos começaram a se organizar para denunciar a miséria em que viviam. Neste clima, Romero foi nomeado Arcebispo de San Salvador, em 1977. A sua escolha era considerada "segura", pois como poderia um intelectual conservador, que falava de santidade, incomodar alguém?
Após três semanas da sua tomada de posse, o amigo de Dom Romero, Padre Rutilio Grande, que prestava assistência aos agricultores empobrecidos, foi assassinado junto com um camponês idoso e um menino, cujos corpos foram expostos na catedral. Dias depois, Dom Romero disse: "Ao ver Rutilio, que ali jazia, pensei que eu também teria o mesmo fim". Uma centelha de luz iluminou o novo Arcebispo sobre como resolver a situação e começou a entender o verdadeiro significado de santidade, à qual aspirava na sua juventude.
Padre Rutilio não foi o único a ser assassinado, impunemente, naqueles anos em El Salvador: todos os dias, desapareciam pessoas; os camponeses estavam aterrorizados; os sacerdotes e agentes pastorais, que queriam ajudar os pobres, eram torturados ou mortos. Então, o tranquilo Arcebispo começou a levantar sua voz, denunciando o governo de direita e a guerrilha de esquerda, inclusive o governo dos Estados Unidos, que fornecia armas, que matavam seu povo. Em suas homilias, Dom Romero apresentava listas semanais de pessoas desaparecidas, torturadas ou assassinadas, que contavam com mais ouvintes do que em qualquer outro programa de rádio do país. (...)
O Arcebispo de San Salvador estava ciente de que aqueles mesmos soldados, que torturavam e matavam seu povo, eram cristãos, na sua grande maioria. Por isso, como pastor deles, dirigia-se a todos com a autoridade que lhe vinha do Senhor. Em 23 de março de 1980, fez uma pregação, pelo rádio, dirigindo-se diretamente a eles: "Nenhum soldado é obrigado a obedecer a uma ordem contrária à lei de Deus... Chegou a hora de tomar consciência... Pois isso, em nome de Deus e deste povo, que sofre há muito tempo, cujo grito sobe cada vez mais alto aos céus, eu lhes imploro, lhes rogo, em nome de Deus, para cessar a repressão"! O Arcebispo sabia que não podia falar assim e continuar vivendo...
No dia 24 de março de 1980, Dom Romero participou de um retiro espiritual para sacerdotes. Na Missa vespertina, que celebrou, disse: “Aqueles que se dedicam ao serviço dos pobres, por amor de Cristo, vivem como o grão de trigo que morre…”. Ao término da sua homilia, ao voltar ao altar, um homem armado entrou na igreja e o baleou.
Esse exemplo eloquente de um João Batista de nossos tempos, como tantos outros perseguidos por causa da justiça em nossos dias: Padre Júlio Lancelotti em São Paulo, em nossa Arquidiocese os Padres Claret e Juquinha, tantos leigos e leigas que se insurgem contra as maldades sociais e buscam oferecer o contraditório frente ao cotidiano de maldades e que estão nas lutas nas pastorais sociais: pastoral carcerária, pastoral com as pessoas de rua, pastoral da sobriedade, luta cotidiana em defesa da vida daqueles que são atingidos por barragens, pastoral da terra e assim vai.
Coragem irmãos, como nos diz o autor de Hebreus: vós ainda não resististes até o sangue na vossa luta contra o pecado (Hb 12,4)!
Deus é bom e Ele cuida de nós!!!
Pe. Jean Lúcio de Souza