Tenho um apreço pelo texto que Lucas nos presenteia, hoje, por vários motivos, mas sobretudo por ser um texto cujo conteúdo é muito revolucionário, para não dizer anárquico, no sentido jurídico e social que a palavra nos evoca.
Rapidamente, sem querer entrar em muitos detalhes, a palavra anarquia, não evoca mera bagunça ou desordem. Na linha do direito histórico Constitucional das nações, todas as vezes que uma nova ordem constitucional nasce (um novo Estado), e com ela uma nova estrutura governamental, o povo de determinada nação sofre um processo revolucionário de transformações, esse processo é qualificado por anárquico, mudança na estrutura de governo, de poder, de ver a nação e conduzi-la.
As cenas do Evangelho mostram essa “santa anarquia” surgindo com o ensinamento de Jesus.
O episódio de hoje está dividido em duas cenas instigantes e que devemos ter um olhar extremamente atento para perceber tais movimentações.
Na primeira cena Lucas nos apresenta Jesus se ocupando do anúncio da Boa-nova do Reino de Deus, algo, que, sob a perspectiva comum dos Evangelistas estaria perfeitamente dentro dos padrões esperados. Jesus cumpre seu ofício e estende seu ensinamento ao grupo mais próximo, chamado a dar continuidade à Sua missão.
A segunda cena está dividida em dois atos entre dois grupos de seguidores.
É sobre isso que queremos conversar, ou chamar a atenção, sobre essa revolução fantástica que o Evangelista nos apresenta, ou seja, dois grupos, não antagônicos, mas que ocupam um lugar muito especial na Seara, são operários e operárias da mesma Messe.
O primeiro grupo, os doze, é incontestavelmente definido entre nós como escolhidos e enviados (Apóstolos), tendo em vista a narrativa da escolha desses homens. Lembremos que Jesus sobe ao monte e após seu momento de oração escolhe os doze, como nos ensina o Evangelista Marcos 3,13 – os que Ele quis. Isto é importante, pois, é e sempre será Jesus que nos escolhe e chama.
Contudo, surge uma pergunta: mas, a partir daquele momento, será que as escolhas são/estão encerradas, Jesus não queria mais ninguém para viver a dimensão do Reino de modo mais estreito com Ele como os doze apóstolos?
Não, não está acabada a dimensão vocacional dos seguidores e seguidoras de Jesus!
O chamado não é esterilizado a partir do envio dos Apóstolos, prova isso, a presença dessas mulheres igualmente nomeadas, isto é, escolhidas no Evangelho de Lucas. Aqui está a revolução de Jesus, sua anarquia.
Para os teólogos Fabris e Maggioni, deve-se ater para a menção às mulheres no séquito de Jesus, em pé de igualdade com os doze e isso é revolucionário e anormal em virtude do modelo social do ambiente naquele tempo onde as mulheres deveriam ser relegadas à segregação e marginalização social e religiosa.
Que processo anárquico fantástico! Jesus muda as estruturas de pensamento e coloca todos, homens e mulheres no mesmo patamar de igualdade eclesiológico. Essa anarquia muda o jeito de ser das comunidades e exerce um reflexo fantástico entre nós até os dias de hoje.
No último dia 14 de setembro na Festa da Exaltação da Santa Cruz, tive a oportunidade de participar do “outro lado da comunidade eclesial”, ou seja, estive mais próximo da comunidade naquele dia, não enquanto aquele que presidiria a eucaristia da festa, mas estive perto daquele povo bonito da comunidade que operacionava a vida comunitária preparando muita coisa, aquelas coisas que a gente, quando chega, já estão prontas, postas e organizadas, desde a preparação da liturgia, dos ambientes ao jantar que fora servido.
Não há como negar, 90% da vida da comunidade estava sendo executada e gerenciada por uma força feminina e apostólica fantástica. Observava cada fato, cada palavra, cada movimento. Tudo com o toque sensível das mulheres lutadoras de nossas comunidades. Mulheres que dividem suas vidas com os afazeres profissionais, familiares e eclesiais, dando à Igreja um caráter familiar onde todos podem encontrar seu espaço.
Pensem comigo, em nossa Paróquia do Sagrado Coração de Jesus somos 16 comunidades, dessas comunidades 4 são coordenadas por homens, 4 por duplas compostas por um homem e uma mulher e as demais por mulheres. A grande maioria de nossas Pastorais são conduzidas por mulheres, quer seja na coordenação, quer na execução das atividades (sobremaneira na catequese), isso, sem levar em conta as expressões Arquidiocesanas.
A partir desta simples constatação, quero adesivar a necessidade de uma reflexão ainda mais séria, uma convocação para que se possa respeitar ainda mais a pessoa das mulheres em nossas comunidades e na sociedade.
Jesus, com certeza, é favorável a essa unidade e ao respeito à feminilidade, pois todas são eleitas ao seguimento, à proximidade com Ele e, portanto, dignificadas no seu amor.
Apesar desse chamado de Jesus, aos olhos da fé nos assustamos, até nossos dias com dados tão alarmantes quando o assunto são as mulheres e a defesa de seus direitos dentro da sociedade civil.
Segundo dados da Agência Patrícia Galvão de 2020 para 2021 a violência contra a mulher cresceu 68%; registros de violência doméstica crescem 26% em dias de jogos; em 2022, 74.930 mulheres foram vítimas de estupro, dentro deste número 56.820 são de absolutamente vulneráveis, ou seja, menores de 14 anos.
Dados do Governo Federal informam que 31 mil denúncias de violência doméstica ou familiar foram feitas até julho de 2022.
O site G1 apresentou dados do anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública alarmantes: as tentativas de feminicídio aumentaram no país 16,9% (2.563 casos); lesão corporal dolosa e violência doméstica no Brasil em 2022 assumem o estrondoso patamar de 245.713 vítimas.
O que apresento é apenas um grão de areia no universo da violência contra as mulheres, uma pequena amostra do que ainda podemos piorar se formos adentrar nos ambientes de trabalho, do preconceito racial, da atuação real e eficaz das mulheres na política, o ambiente carcerário, situações de rua, um imaginário sobre os atos de violência que ocorrem no Brasil e não são registrados, tráfico de mulheres, a violência contra mulheres trans e travestis.
Encerrando, ouvi certo dia em uma Palestra sobre Dignidade humana e uma das palestrantes perguntou no encerramento de sua fala: o que realmente temos feito, quais as ações concretas para que todos sejam respeitados e respeitadas? Que temos feito para que tenham todos os seus direitos respeitados e garantidos? E eu “afunilo” o pensamento: no campo de nossas relações éticas, no que se refere às mulheres no Brasil e na Igreja no Brasil, que temos feito?
Pe. Jean Lúcio de Souza