Pensar em viver a fé e de fato colocá-la em prática representa aderir à proposta de Jesus com grande dose de coragem. E por qual motivo? Nós nos habituamos a “justificar” nossas condutas e oferecemos um aporte frágil aos nossos pensamentos e afetos para, de alguma forma, não precisar executar, enquanto cristãos, aqueles que são os ensinamentos e os caminhos que nos levam a Deus.
O texto que temos hoje diante de nós, extraído do Evangelho de São Mateus, é provocante ao extremo e faz uma bagunça naquele hábito de justificar, que mencionei acima, aprendido ao longo de nossas vidas. Mateus é claro sobre a postura da reconciliação, não há como buscar justificativas que alterem o que Jesus nos diz neste texto, embora, acredito que ouvindo-o tenhamos nossas faces ruborescidas pela vergonha por nossas vãs condutas e injustificadas ações de guerrilhas urbanas e eclesiais.
Nossa justiça precisa ser maior, é preciso nos adequarmos à vontade de Deus antes de querer que os outros se adequem a ela. Os fariseus e mestres da lei eram bons para ensinar, cobrar, acusar, julgar, mas quando se tratava do viver o que se dizia e ensinavam, conseguiam, de alguma maneira, se justificar para não viver o que ensinavam. Nós corremos o risco de proceder assim, ou seja, podemos até ser homens e mulheres com grande e profundo conhecimento das Sagradas Escrituras, da doutrina cristã católica e do magistério, mas quando se trata de aplicar o que se diz crer??? O pensamento equivocado dissimula uma triste resposta: o outro deve ser rápido e diligente, eu posso esperar ou me justificar em não me aplicar a determinada conduta.
E quando o tema é o exercício da misericórdia, do perdão e da reconciliação!? Como diz o ditado popular: “só Jesus na causa”!
Exercitar essas dimensões da cordialidade e da misericórdia, além de provocar a libertação de nossos corações pode nos ensinar muito a pesar e medir nossas condutas, começando pelo falar. A fala de Jesus é muito intrigante, não sei se, de modo pleno, conseguimos perceber a intensidade do que Ele quer nos comunicar. Percebam comigo. O ato de matar é extremoso, horrível, triste e lamentável, matar é um crime, ninguém possui o direito de matar uma pessoa, as consequências finais serão sempre as piores possíveis. Jesus se adianta... Se matar levará qualquer pessoa aos tribunais, antes, muito antes, o encolerizar-se já nos torna réus em juízo.
Cada um de nossos corações funciona como uma espécie de dispensa, ali colocamos o que nos é útil à sobrevivência, como as dispensas de nossas casas. Em nossas casas não colocamos o que nos é inútil, ao contrário, somente o que nos for necessário e bom à sobrevivência entrará em nossas casas. O que Jesus quer dizer então? Antes de matar, o ódio, a raiva, a falta de perdão, a ganância, sede pelo poder, a fofoca e todos os tipos de incentivos negativos ao ato de matar se instalaram em nossos corações de tal maneira que se possa chegar ao extremo do homicídio de outrem.
Mas eu nunca matei ninguém!
Será mesmo? Quantas vezes fomos maus e ácidos com relação à existência de uma ou outra pessoa? Falamos mal, desdenhamos suas vidas, praticamos e provocamos atos de apoio a condutas perigosas, incendiamos consciências com relação ao ódio e ao preconceito. Quantas vezes nos omitimos de modo consciente e deliberado em face ao bem que deveríamos ter feito e não fizemos e justificamos nossas condutas negativas apaziguando ridiculamente nossas vidas. Começamos, às vezes, com uma fala, até vista, no meio social, como simples, sem qualquer conotação má: hum, fulano de tal é tão chato, vocês não concordam!? Ah meu anjo da guarda não se deu com fulano! E assim começamos um rebordeio odioso em nossas dispensas, colocando no coração sentimentos e palavras perigosos, que matam as pessoas socialmente antes de provocar-lhes a morte, pelo isolamento, indiferença e qualquer outro tipo de ação que “cancele” aquele indivíduo.
É assim que uma morte começa a ser engendrada. No direito criminal damos um nome a essa conduta – iter criminis – é o caminho que o crime percorre até seu exaurimento. Os homicídios contra pessoas negras nascem antes da incitação ao preconceito pela cor da pele. Quando crianças não têm merenda nas escolas públicas ou morrem sem atendimento em hospitais por falta de recursos, alguém, ontem, suprimiu recursos públicos que deveriam ser destinados a elas. Quando mulheres são assassinadas por seus companheiros em casa, antes, uma estrutura violenta de qualquer ordem já havia se instalado no seio familiar, sobretudo a violência com as palavras. Quando nossos jovens morrem vitimados pela violência social causada pelo comércio de drogas e seu potencial consumo, há aí, anterior, a fala de que a juventude não tem compromisso, que os jovens não querem saber ter compromisso...
Por essa razão Jesus nos provoca à reconciliação... Porque ainda temos e produzimos o ódio pela cor da pele, pela orientação sexual, pela religião que se professa? Se assim procedemos, antes de piedosamente oferecermos os dons no altar do Senhor, que saibamos oferecer outro dom, o de nos vermos livres de posicionamentos preconceituosos e palavras de ódio aos irmãos e irmãs. Quando formos votar, que nossos votos não sejam levados à paixão de considerações fúteis ou por favorecimentos e, tão pouco, por estruturas históricas solidificadas que não cooperam para o bem comum, que sejamos capazes de perceber onde estão as boas obras e as condutas, livres de interesses, contrárias à nação, sobremaneira contrárias aos menos favorecidos. Aqueles (as) que nos representarão quer seja no legislativo para legislar o façam em favor do bem, da justiça e da ética. Aqueles (as) que almejam exercer um ofício no executivo devem ser observados se aplicam os conceitos vivos da administração pública, mas também e o mais importante se suas condutas são condutas cristãs. Essa é a reconciliação política integral que necessitamos, sem ela, a fome, a criminalidade, a falta de saúde, a educação precária serão o símbolo de nosso fracasso humano e cristão.
Reconciliar é buscar conciliar-se-com-o-outro, trata-se de buscar a paz e colocá-la na dispensa de nossos corações por uma consciência tranquila e livre de tudo aquilo que poderia corromper nossas vidas e provocar a morte de outrem. Reconciliar exige diálogo, compreensão da existência e dos limites de cada pessoa e situação, é procurar descer aos nossos próprios limites e reconhecer nossas fragilidades diante do mundo e das pessoas que nos cercam, para superar tudo em bem da edificação do Reino de Deus. A reconciliação é um movimento forte e importante, ela não permite negociatas, ela é exigente quanto ao que se chama a fazer, isto é, a busca do bem, da paz e da misericórdia que promovem a vida e não a morte.
Pe. Jean Lúcio de Souza