Caros irmãos e irmãs,
Estamos, nesta segunda-feira diante de um texto muito interessante e complexo. Sua linguagem vai para além daquilo que nossos olhos querem ver, têm a tendência de querer tomar como absoluta realidade de fé. É preciso analisar o texto com maior atenção para não ficarmos presos ao óbvio que, nem sempre será o verdadeiro.
O cenário que nos é apresentado torna-se propício, a região de Gerasa (gerasenos). Geograficamente, segundo teólogos, é difícil situá-la, ainda mais pela indicação de certo “monte”, mas o que nos chama a atenção é que Gerasa era uma região pagã. Quando Marcos sinaliza a chegada a outra margem, quer falar justamente de um “não exclusivismo” de Jesus Cristo. Jesus não se prende em uma zona de conforto entre os seus, mas, antes, Ele mesmo avança para águas mais profundas, inóspitas, pouco conhecidas e o mais interessante, leva consigo os discípulos.
Marcos situa a cena logo após a travessia conturbada da tempestade violenta: Mestre, não te importas? Acredito que toda travessia, toda mudança é sempre desafiadora. Mudar a vida, os pensamentos, ver-nos livres de preconceitos, desordens pessoais e sociais tudo exige de nós outro padrão de racionalidade e comprometimento frente às mudanças que a vida vai nos apresentando. É justamente na travessia que Jesus mostra como ele se importa dando atenção às reais tempestades da existência daqueles que estão longe do conforto e libertação integral do Evangelho. Os discípulos devem se adequar à novidade: ir ao encontro de quem ninguém quer se encontrar, dobrar ao chão qualquer sinal de sujeição humana...
Agora é preciso ter firme confiança em Deus e em seu enviado, Jesus.
Os pés de Jesus e dos discípulos pousam em terras pagãs e já na chegada vem ao encontro deles um “louco”. As características do pobre homem são um cartão de visita pouco usual e desejado: possuído, residente em um cemitério (conjunto de grutas mortuárias), indomável, possuidor de uma ausência de autocuidado, vagante, nu, seu nome (identidade) já não era mais importante e não falava mais por si...
É de perder o fôlego!
Mas Marcos tem uma intenção muito interessante e direta ao usar aquele homem como exemplo em seu Evangelho. Para o povo judeu, o cemitério é um lugar muito impuro, quiçá o lugar mais impuro para ele. Um pagão em um cemitério naquelas condições apresentadas serviu para expressar justamente que aquele indivíduo era um morto social, um desprezado, desprovido de qualquer tipo de proteção e dignidade (um pobre em espírito?).
O possuído poderia significar várias coisas, aliás, para quem já se encontra na condição de um quase morto, qualquer coisa que lho possua já será “muito”. Não é mesmo? Esse estar possuído pode qualificar uma demência, uma fragilidade psicológica, um limite com relação à saúde. Pode também significar dominação por um estado de coisas que subjuga a humanidade colocando-a em tamanho risco que as mínimas condições de se identificar uma pessoa são-lhe tolhidas.
Essas situações de um não-vivo, de estar imerso em condições de fragilidade política e social, de limites pessoais com relação à saúde e ao cuidado de si, que impedem o ser de ser humano, criam uma força imensa. Ele perde seu nome, sua identidade, sua cultura, seu ethos é ferido em essência e assume o nome da Legião Romana dominadora (destacamento de 6 mil guardas romanos) que escravizava o povo. Essa força que incapacita de se regressar à dignidade humana é marcada pelas correntes. O homem deveria ser acorrentado como um animal voraz e perigoso, mas nem as correntes o seguram, porque os males que o atingem só poderão ser resolvidos de outra forma... As correntes, símbolos de dominação, não eram mais físicas, mas culturais, a dominação romana obriga ao “sem identidade” deixar que o dominador fale por ele.
Interessante pensar que ele estava nu (estava nu e me vestistes), pois no final o evangelista diz que o encontro com Jesus o revestiu de dignidade, como o Pai deseja que ninguém se perca o irmão Jesus encontra-se com este filho que saiu de casa e devolve-lhe em nome do Pai, a dignidade das vestes (trazei uma túnica nova e vesti-o).
Vocês conseguem perceber que tudo que envolve aquele homem nos primeiros momentos daquele encontro com Jesus são informações de dominação?
À semelhança da tempestade, Jesus dá uma ordem àquilo que domina a humanidade naquela pessoa: espírito imundo saia deste homem... É engraçado porque não há uma saída imediata, mas o que surge é surpreendente, um diálogo. O mal personificado “conversa” com Jesus. O Evangelho de Marcos é todo escrito em grego, mas o nome do possuidor – Legião – é escrito em latim, língua do povo colonizador, os romanos. Isto é simbólico, a dominação ocorre até na linguagem. A saída é gradual, porque é preciso a conscientização da travessia. É preciso ir abrindo mão daquilo que nos domina, desde a linguagem do outro dominador até a devolução da capacidade de dizer por si e não mais viver em uma espécie de menoridade em que o outro dominador/possuidor diga algo por mim. Isto, não nos representa.
O encontro com Jesus nos devolve a nós mesmos. Nos devolve a dignidade, pois o Evangelho nos indica o caminho que é luz para nossas vidas. Não precisamos que outros nos digam o que fazer, redescobrimos a alegria de conviver com nossa própria história e identidade, nos revestimos da dignidade dos filhos e filhas de Deus e nos entendemos com nossas vidas. Aprendemos a falar por nós e a proclamar as belezas e maravilhas da Palavra que nos abre às novas perspectivas da travessia, chegamos à outra margem do ser em segurança e sorrimos felizes, por sermos libertos.
O segundo momento é uma reviravolta. A Legião deixa o homem. A Legião que se encontra com Jesus afoga-se na arrogância, no ódio e na indiferença. Os maus e os dominadores importam-se somente com impostos, importam-se com leis que oprimem e desnudam o povo. Os maus não se importam porque vivendo na escuridão de sua incapacidade de amar e servir bebem da água salgada de sua própria ação de dominação. De um lado Jesus liberta amando, de outro, os maus se perdem por não entender o que o amor liberta e não aprisiona.
O homem se encontra com Jesus em seu perfeito juízo (pode decidir por si), o homem está vestido. Ele se assenta à mesa com Jesus e participa da intimidade do Reino. É o primeiro discípulo chamado a anunciar as maravilhas de Deus em terras pagãs. E ele vai, não se furta à missão dada. Ele fala por si e, falando por si, fala do Evangelho do amor que o encontrou e o livrou da dominação do mal.
Com Jesus a gente recupera o fôlego para continuarmos a caminhada como homens e mulheres libertos de nossas “prisões”.
Coragem irmãos e irmãs!
Deus é bom e Ele cuida de nós!
Pe. Jean Lúcio de Souza
Memória litúrgica de São Brás.
São Bás, rogai por nós!
Nos livre dos males da garganta e de qualquer outra doença. Amém!